maio 16, 2011

O impacto do caju no destino


“Há um reboliço estridente que ninguém entende e que apenas um sente. Há um reboliço insuportável que dá sentido ao que fui e torna falso o que sou. Há um pleno de miséria neste reboliço de movimento perpétuo, da minha miséria. Há uma fome compulsiva de insatisfação na busca de um propósito que a minha excessiva lucidez confirma não existir mas com a qual a minha intuição teima atormentar-me com uma suspeita latejante.
Há uma raiva latente que habitando algures na minha mente surge por vontade própria violando o espaço que é meu por direito. Sem rodeios ou pudores usa-me como torre para espreitar o mundo, sorve nas frustrações o pulsar que lhe dá forma e desaparece num arrepio.
Houve um tempo em que...”
, Hilidio fez uma pausa e parou o olhar no horizonte.

Perdoem-me, não vos apresentei o Hilidio. De seu nome Hilidio José é um abutre normal. Optou por se manter solteiro pois nenhuma abutre fêmea merecia que ele lhe oferecesse carcaças para o repasto. Passa os dias num ramo seco a contar pedras de areia do deserto buscando inspiração para o “Diário das almas”, que escrevia quando decidiu mirar o horizonte.

Ao fundo vislumbra um ponto em movimento, e pensa de si mesmo para ele próprio: “Hum... Hilidio José, estarás tu a observar a passada do desespero?”. Meteu asas ao caminho e foi verificar o que se passava. Era Onofre Jacinto. Jovem de ideias pouco certeiras havia naquele mesmo dia decidido pôr termo àquilo que apelidava de vida. Hilidio quis saber mais...

Hilidio – Olá! Então queres ser cremado ou enterrado?
Onofre – Tu estás a falar comigo?
Hilidio – Importaste de responder ao que te perguntei?
Onofre – Enterrado. Sempre que entrelaçava os dedos a mamã exclamava “Ai meu rico menino que vai dar um morto tão lindo!”.
Hilidio – Preparaste a argumentação que para validar o teu acto?
Onofre – Como assim?
Hilidio – Ora jovem, tens de possuir um bom fundamento para seres aceite aqui! Pensas que é só cortar o pulso e voltas ao útero da humanidade?
Onofrepensativo – Eu fiz isto porque... Queria comer cajus com sal e só havia cajus com picante. E eu não posso comer picante derivado das minhas hemorroidas!
Hilidio – Olha pequeno, prepara-te para comer picante porque vais ganhar um bilhete de volta para casa... e um atestado de estupidez autografado pelo santo que esteja hoje de serviço.
Onofre – Nunca pensaste em suicidar-te?
Hilidio – Boa pergunta. Sim, já. Aliás sou um depressivo crónico e tenho a tese do meu suicídio já bem fundamentada, mas sabes, eu depois ia para o Paraíso e aqui que ninguém nos ouve: Deus não aguentaria a concorrência.

Chagados à porta do Juízo Individual, Hilidio desceu do ombro esquerdo de Onofre e desejou-lhe um bom regresso a casa deixando encontro marcado para dali a 68 anos às 19horas e 23 minutos.

Hilidio regressou ao seu ramo seco, sabia que aquela tampa Divina iria custar a Onofre mas afinal quem nunca levou um tampa na vida? Aquela até devia ser considerada uma honra. Sem demoras o intrigante abutre retoma a sua escrita: “Houve um tempo em que o banal me acalmava, hoje vejo que encerrado no nascimento, habita um significado mais profundo que a mera passagem de anfíbio uterino a terrestre socialmente moldado. Há nessa evolução de segundos, o tempo de uma hora aquando do qual, o ingénuo e o Divino selam um acordo. O livre arbítrio, encontra-se estrategicamente presente neste instante, mimetizando a concepção da praga. E o que é o livre arbítrio senão uma liberdade ilusória?”

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